O menino da cabeça de pirarucu

O fabuloso pirarucu da Amazônia 


Jabert Diniz Júnior

Tradição, segundo os dicionários, é um termo que se refere à transmissão de costumes, valores, crenças, comportamentos, memórias e lendas de uma comunidade para outra. A palavra tem origem no latim "traditio", que significa "passar adiante" ou "entregar". Então, pode-se entender a tradição como um conjunto de sistemas simbólicos que são passados de geração a geração e que tem um caráter repetitivo.

Em um país de dimensões continentais como o Brasil, as tradições são muito distintas de uma região para outra, considerando a origem e a diversidade do povo brasileiro.

Há algum tempo, não muito distante, quando as empresas de aviação ainda não faziam a cobrança de taxa de bagagens despachadas, ou, talvez, no preço, tal taxa já estivesse embutida no preço, uma vez que as passagens aéreas sempre foram muito caras, era comum as pessoas levarem muitas e muitas bagagens em suas viagens.

As cidades da região do Baixo Amazonas (Alenquer, Santarém, Monte Alegre, Óbidos, Oriximiná, etc.), no Estado do Pará, nas décadas de 1970/80, não possuíam universidades e/ou faculdades. Então, quem quisesse e pudesse colocar seus filhos para cursar a educação superior, ou prepará-los para ingressar na universidade, tinha que mandá-los para a capital, Belém, ou para o centro-sul do país. O mais comum, no entanto, era ir para a "Cidade das Mangueiras" mesmo.

Para mantê-los lá, estudando, muitas das vezes, os filhos moravam em casa de parentes. E para compensar a gentileza e a paciência, era comum, ou tradição, que os pais sempre mandassem mantimentos, as coisas típicas do interior paraense, para ajudar a família que dava guarida para seus pupilos.

Mais tradicional, ainda, era mandar tais suprimentos pelos filhos, quando estes retornavam das férias escolares (período que, invariavelmente, passavam nas suas cidades de origem). Eram comidas regionais, especialmente os peixes não muito comuns na capital, como: pirarucu, tucunaré, tambaqui, surubim e acari, mas também, queijos, doces e até carnes nobres bovinas, por serem mais baratas no interior.

Num daqueles finais de férias, a garotada retornando para a capital, depois de merecidas férias de final de ano com muitas farras em Alenquer, Olilak, um jovem ximango, filho de um grande pecuarista da cidade, estava renovado e pronto para retornar à lida dos estudos em Belém.

O barco motor Antonico, do senhor Ivan Nunes, sairia de Alenquer com destino a Santarém, às dez horas da noite daquela quinta-feira, dia 31 de janeiro de 1980. De Santarém, o jovem estudante viajaria no boeing da Varig até Belém.

Sua mãe, muito solícita e agradecida com os anfitriões do filho na capital, preparou uma boa encomenda para enviar à irmã e ao cunhado. Encheu um isopor (caixa térmica) com acari, surubim, tambaqui, ventrecha de pirarucu, piracuí, galinha caipira, doces caseiros, queijos, filé e muitas outras coisas. E quando ela ia colocar o principal, a cereja do bolo, uma cabeça de pirarucu, o “gigante da Amazônia”, esta não coube mais no enorme e abarrotado recipiente.

Mas, dona Elis, mãe de Olilak, não desistindo de mandar o que ela considerava a principal encomenda, a iguaria que seu cunhado mais apreciava, resolveu envolvê-la, com muito cuidado, em folhas de jornal, colocá-la em uma sacola e dar para o filho levar para os seus tios, recomendando muito cuidado para não esquecê-la pelo caminho.

Olilak, menino obediente, muito educado e muito amoroso com sua mãe, nem questionou a decisão de sua amada genitora.

Foi embora Olilak, foi embora para Belém o esforçado estudante com suas bagagens, sua cabeça de pirarucu e com lágrimas nos olhos, já com saudade de sua cidade natal, dos seus amigos de infância e de farra e de suas inúmeras namoradas ximangas.

O Antonico chegou em Santarém por volta das quatro horas da manhã do dia seguinte e Olilak ficou hospedado no barco mesmo, indo de taxi para o aeroporto somente por volta das dezesseis horas.

No aeroporto, fazendo o check-in, despachou o isopor e suas malas para o setor de bagagem, mas levando a sacola com a cabeça de pirarucu com ele, para que não a perdesse de vista. Recomendação de sua bondosa mãe. Nesse momento, Olilak notou que algo não cheirava bem.


E na sala de embarque, ele começou a perceber que alguma coisa, além do forte odor, vazava da sacola da cabeça de pirarucu. Quando a pegou do chão para se dirigir à aeronave, viu que ficou molhado embaixo. Bom, pensou ele: "Já estou aqui mesmo, minha mãe que mandou pros meus tios, agora vou levar".

Olilak embarcou no avião. E quando as portas se fecharam e a aeronave começou os procedimentos de decolagem, aí o bicho pegou. O cheiro do peixe imediatamente começou a empestear o ambiente.

Quando a aeronave já estava em voo de cruzeiro, um passageiro da poltrona de trás de Olilak chamou a aeromoça para informar que ali por perto dele estava um fedor horrível e que não aceitava viajar naquelas condições, tendo pago um preço tão alto em sua passagem e de sua família. Exigia uma providência.

A aeromoça, então, começou a fungar, tentando farejar de onde vinha o cheiro, quer dizer, o fedor horrível, uma vez que parecia que todo o avião estava empesteado com aquele odor de pirarucu salgado.

A passageira do lado de Olilak, a da poltrona da janela, que já tinha percebido, nem olhava para Olilak e nem para a aeromoça, morta de vergonha.

Depois de uns dez minutos de voo, avião em direção à capital paraense, um dos passageiros, que também ajudava na tarefa de encontrar o bicho morto (todos achavam que era uma mucura morta há dias), finalmente identificou de onde vinha o terrível cheiro: "Aqui, aeromoça, aqui!". E, fazendo um estardalhaço, apontando para o pobre filho da dona Elis, já meio encolhido na sua poltrona, chamando a atenção de todos no avião, com dois dedos da mão esquerda tapando o nariz, continuou: "Meu Deus, esse menino aqui tá podre!".

Pobre Olilak, todo bem vestido pra viagem, calça Lee, camisa pra dentro da calça, cinto de peão de boiadeiro, com fivelona de cavalo e bota bico fino de salto carrapeta, mas com uma cabeça de pirarucu muito pixé embaixo de sua poltrona.

A aeromoça rapidamente se aproximou, viu a sacola embaixo do banco do passageiro ximango e, educadamente, perguntou: "Meu filho, o que é que você tem aí nesta sacola, pelo amor de Deus?!". Depois que Olilak disse o que era, explicando a situação, a aeromoça, compadecida com o pobre estudante, pediu educadamente para guardar sua encomenda na geladeira do avião.

A aeromoça pegou a sacola e se dirigiu para os fundos do avião quase correndo, porque, da sacola, iam pingando aqueles pingos fedorentos.

E por onde ela ia passando, no corredor, as pessoas tapavam o nariz e diziam alguma coisa. Uma senhora exclamou: "Meu Deus, isso é um urubu morto?!!!". Outros diziam: "Joga isso pela janela, pelo amor de Deus!". Chegaram ao absurdo de dizer: "Joga o menino junto com a carniça dele!”. Mas esse já foi um conterrâneo gaiato, muito amigo dos pais de Olilak, que viajava no mesmo voo.

O consolo do jovem Olilak, que quase morre de vergonha nesta fatídica viagem, foi que a cabeça de pirarucu, no dia seguinte, foi saboreada por ele e pelos seus tios e primos, numa espetacular “caldeirada” regada a muito cheiro-verde, limão e pimenta malagueta. E exalava um odor maravilhoso que, nem de longe, lembrava aquele cheiro horroroso no avião.

Caldeirada de pirarucu: um delicioso prato da culinária amazônida, depois de uma grande aventura.

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