Esqueceram de mim?

Da coletânea: Lampejos da Memória II: Esqueceram de mim?

Chico Rápido, Charuto, Nosval, Mamãe Diabo e Saiúda

Por Jabert Diniz Júnior - Santarém,Pa

Há em todo o mundo, no Brasil todo, em todas as cidades e lugarejos do país e mundo afora personagens famosas,  grandes vultos da humanidade. Você, com pouco esforço, imediatamente, consegue se lembrar de mais de uma dúzia num instante: Jesus Cristo, Buda, Papa Francisco, imperadores romanos, como Júlio César e Nero, presidentes americanos, como George Washington e Barack Obama,  personagens da história do Brasil, como Pedro Alvares Cabral, José Bonifácio, Tiradentes, Getúlio Vargas e Luiz Inácio Lula da Silva, atores e atrizes  famosos como Lima Duarte e  Fernanda Montenegro, cantores e cantoras  como Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso, Mariza Monte e Rita Lee, escritores consagrados como Jorge Amado e Ariano Suassuna, músicos reconhecidos internacionalmente como Hermeto Pascoal e Sebastião Tapajós,  e por aí vai.

Na cidade em que você nasceu, ou mora, certamente, há e houve personalidades famosas também. Figuras que se destacaram politicamente, artisticamente ou culturalmente e que, em algum momento da sua vida, você já conviveu, ouviu falar ou leu a respeito delas.

Onde eu nasci, por exemplo, Alenquer, Estado do Pará, viveram e ainda vivem várias personalidades de renome, tendo sido, inclusive, várias delas, retratadas pelo excelente historiador e escritor ximango Wildson Queiroz, em suas coletâneas intituladas  "Personalidades Históricas de Alenquer". Figuras importantes que foram destaques na cultura, na educação, na política e no meio empresarial da cidade, que até foram homenageadas emprestando seus nomes a escolas, ruas, praças, etc. É o caso de: Fulgêncio Simões, homenageado com o nome do primeiro e imponente Grupo Escolar do município; Amadeu Burlamaqui, Jorge Sadala, Veridiana Corrêa e José Jorge Hage, que também deram nome a importantes escolas da cidade; João Tito e Eloy Simões, que denominaram duas praças; e, Benedito Monteiro, Antonio Mesquita e João Ferreira, que foram homenageados com nomes de ruas.

Grupo Escolar Fulgêncio Simões: o "Templo do Saber" de Alenquer. Mais de 100 anos prestando serviços de qualidade na educação ximanga.

A respeito dessas personagens, como já frisado, você encontra informações em livros, mídias eletrônicas, jornais ou em algum outro tipo de documentação.

Mas há um outro tipo de personagem das cidades que você não encontra facilmente em nenhuma literatura disponível e, quando perguntado sobre elas, somente  algumas pessoas mais antigas têm alguma lembrança ou conhecimento. Mas essas personagens  existiram e fizeram parte, de alguma forma, da vida e do cotidiano da cidade, especialmente de um período importantíssimo de nossas vidas, nossa infância. E é dessas figuras que eu aqui quero lembrar e deixar algum registro.

Chico Rápido, Charuto, Nosval, Mamãe Diabo e Saiúda são apenas algumas dessas personagens "quase esquecidas" que eu conheci no meu período infantojuvenil em Alenquer. Eles não foram gestores públicos, políticos, médicos, advogados ou professores. Para nós, moleques naqueles tempos, nem nomes eles tinham, apenas apelidos. Eram gente humilde, descamisados, que viviam pela cidade fazendo algum serviço, eu diria, "menos digno". Uns moravam de favor em casas de algumas famílias, outros com parentes, outros, talvez, nas ruas. Alguns,  porém, passavam grande parte do seu tempo nas ruas, nas redondezas do Mercado Municipal, em torno do bar "Capelinha", de propriedade do "seu Moço", do "cliper Beira Mar", do seu Leonel e do famoso "Sinuca Bar", pertencente ao seu Raimundo Canuto, fazendo algum "servicinho" para receber uns trocadinhos ou, às vezes, uma dose de pinga.

Dessas personagens, quase esquecidas pela população alenquerense, apenas sobre Chico Rápido há escritos até onde pude averiguar. O saudoso Aldo arrais, um poeta e escritor ximango, por ocasião do centenário da cidade, em 1981, escreveu uma bela crônica sobre essa figura, que morava na casa do seu Luisinho Siqueira e dona Alquimima, local onde hoje funciona o  Museu da Cidade de Alenquer, em frente à casa dos meus pais (naqueles tempos, casa do vô Zé Hage e Vó Niquita).

Daniel Nascimento, outro escritor e poeta ximango, professor pós-doutor e pesquisador do Instituto Federal do Amazonas - IFAM (esse é meu contemporâneo), também escreveu sobre Chico Rápido em seu livro intitulado "Retratos de Alenquer". Mas, dessa vez, um belo poema, poema este que, ao lê-lo, nos remete imediatamente a uma inevitável viagem no tempo, fazendo-nos retornar ao período em que éramos criança. 

Chico Rápido, na descrição de Aldo Arrais e Daniel, corroborada pelas reminiscências do meu tempo de criança, era um homem baixinho, negro, franzino, de rosto sofrido,  que andava descalço, com passos curtinhos e lentos, sem pressa nenhuma, o que nos faz perceber,  logo de cara, a ironia do seu apelido. A molecada, incluindo esse que vos fala, inconscientemente, ou não, caçoava dele, que ficava muito bravo, mas sua reação era tão lenta, tão lenta, que não era suficiente para alcançar os ágeis e danados moleques.

Chico, segundo Aldo Arrais, torcia para o clube de futebol União Esportiva, talvez pela influência da vizinhança, nesse caso  do senhor Zé Hage (meu avô), presidente do clube naqueles tempos.

Virgem de sexo e de amor, ainda segundo Aldo Arrais, pois nunca andou com mulher alguma, Chico Rápido era muito prestativo e ajudava a encher água nas casas vizinhas, algumas vezes apenas pelo costume de ser útil e querer ajudar.

E foi justamente quando fazia uma dessas tarefas, sem pressa nenhuma, sem se afobar, que Chico Rápido foi atropelado em frente ao Mercado Municipal da cidade, na "Rodafrente", atual Av. Benedito Monteiro. Sem queixume, sem revolta e sem pressa, assim como viveu, Chico se foi, o Chico morreu. E, parafraseando Aldo Arrais: "Chico Rápido morreu. Na vida fez tudo devagar... mas entrou muito rápido no céu..."

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Charuto. Dessa personagem tenho uma vaga lembrança de sua fisionomia, era um homem negro que, a exemplo de Chico Rápido, andava com um passinho curto, puxando uma das pernas. Ao que me lembro, Charuto não tinha o dedão de um dos pés, daí ele andar meio puxando uma perna por conta do apoio perdido em função dessa deficiência. Seu apelido, não sei se origina dessa deficiência e também nunca soube como ele perdeu o dedo. Charuto vivia fazendo "mandados" para algumas famílias que moravam ali pelo centro da cidade. Ia ao mercado municipal comprar carne, passando pela frente do boxe do Baçu; ou era mandado ir lá na "beira", buscar uma cambada de pacu,  ou de carauaçu, direto das canoas dos pescadores. Cedo já estava por ali pelo mercado, onde, frequentemente, tomava um café com leite e pão, ou um mingal de milho, no boxe do seu Gurjão.

Mercado Municipal de Alenquer: local bastante frequentado pelas nossas personagens no passado.

Nosval era um camarada baixinho, de cor clara, meio calvo e que andava rodeado de cachorros. Animais fiéis como são, os cachorros só podiam ser bem tratados por ele, que, ainda que, com seus parcos recursos, os alimentava com o que dispunha. Nosval, segundo constatei em uma breve pesquisa com amigos da cidade, foi casado e teve filhos. E, de acordo com Severino Brandão, trabalhou como servente do Grupo Escolar Fulgêncio Simões. Mas, devido a algum acontecimento de ordem pessoal, saiu de casa e passou a morar de favor em um barraco que havia dentro das dependências da escola em que trabalhava. A minha lembrança, no entanto, era daquele sujeito andando na rua, maltrapilho, em direção ao Mercado, certamente para fazer algum "mandado", sendo seguido por uma ruma de cães magricelas. Parece que Nosval terminou seus dias, morando na casa de uma família tradicional da cidade, que lhe deu abrigo, já com problemas de demência.

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Mamãe Diabo... Mamãe Diabo??? Sério? Sim, Mamãe Diabo. Nas minhas lembranças de garoto, Mamãe Diabo era um camarada branco, jovem e forte. Não posso afirmar se tinha algum problema mental, mas já apresentava muita afinidade com a bebida. O certo é que, por inconsequência, ou por maldade mesmo, algumas pessoas o desafiavam a fazer as coisas mais absurdas em troca de uma dose de cachaça. E daí, ofereciam a bebida ao rapaz caso ele mergulhasse em uma fossa aberta, por exemplo. Havia relatos de que, para conseguir uma outra dose, ele comia sapos e baratas para satisfazer o prazer sádico de algumas pessoas inescrupulosas. E ele fazia isso com grande desenvoltura. Entrevistando Max Fima, neste final de ano de 2023, (um amigo, que dizem as lendas ximangas, já tem mais de 300 anos...rs) a respeito dessa personagem, fiquei sabendo que Mamãe Diabo era primo legítimo de sua esposa, a dona Áurea Fima. Max e dona Áurea também confirmaram o que eu havia escutado naqueles tempos. Que um dia, num final de tarde, desafiaram Mamãe Diabo a comer vidro. Como disse, não posso afirmar se ele tinha alguma deficiência mental, mas o que aconteceu é que ele, por coragem ou tolice, engoliu o vidro de um copo que ele mesmo quebrou com os dentes, levando-o a ter um trágico fim, depois de ter, provavelmente, uma hemorragia interna na mesma noite daquele fatídico episódio, causada pela ingestão do vidro. Dona Áurea me contou o seguinte sobre o Mamãe Diabo: "Ele sempre passava na frente de casa todos os finais de tarde e falava comigo assim: 'oi minha prima, como vai, tudo bem?' Mas nesse dia, depois desse ato insano, ele parou em frente de casa e ficou me olhando, olhando.... e depois, sem dar uma palvra,  seguiu pra casa da avó dele, que ficava ali perto da sede do clube Internacional."

Sinuca Bar: na decada de 1970 era um local muito frequentado. Ao fundo, podemos ver o Cliper Beira Mar.

Saiúda, vejam só, ela ficava fula da vida quando nós, moleques inconsequentes e indiferentes ao seu sofrimento, nos divertíamos "mexendo" com ela. "Ei Saiúda", a gente gritava, meio de longe, fazendo com que ela corresse atrás da gente  - uma cambada de moleques - com um pedaço de pau na mão, ou com pedras, que tentava nos acertar e falando alguns palavrões. A gente se deleitava com isso. "Mexer" com a Saiúda, que era uma mulher comum, mas que usava sempre uma saia um tantinho comprida, o que naturalmente deve ter originado seu apelido, era uma diversão quase que diária daqueles capetas. Não sei que fim teve ela, cujo o nome também nunca soube. E acredito que ela morava na "casa velha", que era uma casa que ficava entre a residência do seu Rivail e a do Sandoval, em frente à casa do seu Aldo Arrais. A casa que, muitos anos depois, viveu o professor Guilherme Antônio.

Trajeto percorrido inúmeras vezes por Chico Rápido, Charuto, Nosval e Mamãe Diabo, até seus locais de destino. 

Toda essa vivência com essas "curiosas" personagens se deu nos anos setenta, com comportamentos e costumes daquela época, até os meus onze anos, mais ou menos, completados no ano de 1979. Anos dourados para aquela molecada que viveu a infância naquela época numa cidadezinha como Alenquer, localizada no oeste do estado do Pará,  bem no coração da Amazônia.

Essas personagens são apenas algumas de várias e várias que viveram na minha cidade natal. Vale ressaltar que a ideia desse texto é, em primeiro lugar, deixar um registro dessas personagens para que não caiam definitivamente no esquecimento. Em segundo lugar e não menos importante, é, também, em nome de toda aquela molecada, que hoje, alguns até avôs já são, fazer uma retratação dos males que, porventura, a algumas delas, possamos ter feito apenas com o intuito de nos divertir, alheios aos seus sofrimentos.

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